MÃES RELATAM QUE COMEM SOBRAS DE VIZINHOS PARA TER ALIMENTAÇÃO NO CEARÁ



O improviso é palavra constante na vida de Joseane Ferreira Lima, 32 anos, principalmente nos últimos meses, quando a escassez de comida para a família se intensificou. Moradora do Conjunto Barroso II, no Bairro Passaré, em Fortaleza, ela e os três filhos vivem em um puxadinho com sala, cozinha e banheiro em parte de um imóvel cedido pela mãe. No lar, água, energia elétrica, fogão e colchão são improvisados.


"Eu não tenho condições de morar de aluguel. Tô comendo mal, pouco e ruim, aí vou pagar um aluguel e fazer o quê? Comer a casa?", questionou, já que basicamente toda a renda é voltada para conseguir alimentar a família — que também conta com o improviso na hora de comer.

Um relatório da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) divulgado neste mês de julho indicou que 61,3 milhões de brasileiros lidaram com algum tipo de insegurança alimentar no país entre 2019 e 2021. O g1 conversou com famílias de Fortaleza em situação de vulnerabilidade e mostra que a restrição de alimentos não aconteceu apenas nesses anos, sendo acentuada pelo aumento dos preços e pela falta de trabalho.


"Eu só comprava o 'grosso'. E, hoje em dia, eu só compro a metade do 'grosso' que eu comprava, porque não tenho como comprar mais", diz referindo aos alimentos de consumo essenciais.


Desempregada, Joseane conta com apenas R$ 400 do Auxílio Brasil como renda certa por mês. O resto vem da venda vassouras feitas à mão com material ou de eventuais serviços de limpeza. Nesses casos, tira entre R$ 15 e R$ 25, que não são dinheiro para compras, mas "pra comer ali na hora".



"Eu já vivia na dificuldade antes da pandemia. Eu vivo com pouco, nunca vivi com muito. Mas a dificuldade aumentou, com certeza. Veio de lá pra cá a piorar mais".


Atualmente, a lista de compras da família inclui arroz, feijão, macarrão, farinha, açúcar, xampu, creme, sabonete, desinfetante, sabão e água sanitária. Ficam fora carne, ovos e outras proteínas, a “mistura”, como ela chama. Alimentos como café e bolacha entram no cardápio “quando dá”, segundo Joseane.


“É com isso que a gente sobrevive”, ressaltou, lembrando que, até recentemente, conseguia os insumos por outras vias. “Às vezes, consigo umas salsichas, uma mortadelazinha, um courinho de galinha, ossos [...] Teve um tempo em que os açougues tavam dando, mas agora tão vendendo".


Por não conseguir mais comprar a proteína, "reaproveitar" virou palavra de ordem na morada de Joseane. A comida feita por ela em casa é cuidadosamente guardada para garantir uma refeição para a família no dia seguinte. "Reaproveito tudo. Não tenho condições de botar comida pra azedar e jogar fora", contou.


O reaproveitamento de restos das comidas de pessoas das proximidades ajuda a compor a mesa, desde que as sobras não estejam azedas ou podres.


“A situação é de a vizinha chegar e: 'mulher, sobrou um resto de feijão, tu quer o resto?' E eu: 'quero'. Aí a mulher: 'ah, eu vou dar pro porco, pro cachorro'. 'O porco aqui sou eu, o cachorro aqui sou eu'. 'Dá pra mim, mande pra cá'. Vou limpando, vou limpando, pegando os pedaços que sobram e guardando.”


Assim, Joseane passou a ter ajuda da comunidade para alimentar a família. Apesar de contar com a vizinhança, ela convive com o medo de "chegar ao extremo" e ter de buscar comida descartada. "Se precisar, eu irei lá no lixo e vou trazer, mas espero que isso não aconteça. Por isso estou pedindo socorro, ajuda, pra que isso não aconteça, pois eu tô numa situação difícil".


Preços mais caros

Érika Cristina da Silva Rocha, 20 anos, acumulou responsabilidades extras durante a pandemia de Covid-19. Mãe de Cedryk, três anos, a jovem passou a cuidar dos irmãos Eric e Gerson, de 14 e oito anos, após os pais se separarem. A mãe dela, que fazia faxinas ocasionalmente para complementar a renda da família, saiu de casa, e a possibilidade de conseguir comida, conforme a jovem, ficou "muito complicada", mesmo com o recebimento do Auxílio Brasil.


"Hoje em dia, R$ 400 é uma ajuda, claro, é uma ajuda. Mas, em compensação, se você for num mercantil, você volta sem praticamente nada. Porque o arroz tá caro, o feijão tá caro, o café tá caro, o açúcar tá quase o preço do arroz... Tá tudo muito caro."

O 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia, da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), indicou que 73,3% das famílias que recebem o Bolsa Família — interrompido no ano passado — ou o Auxílio Brasil passam por algum nível de insegurança alimentar, independentemente da renda per capita. Quando essa renda é de 1/4 de salário mínimo por pessoa, os níveis de insegurança alimentar atingem 91,9% da população em tal condição financeira, da qual 44,3% passam fome.


Segundo o relatório, realizado entre 2021 e 2022, os altos índices das formas mais graves da insegurança alimentar, mesmo nos lares em que as famílias recebiam o benefício, levam a crer que "a transferência de recursos monetários destes programas sociais não foi suficiente para garantir acesso pleno aos alimentos". Uma das explicações indicadas pelo estudo é a de que as famílias tinham de usar os recursos recebidos para atender a outras necessidades básicas.

G1/CE

Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem