No quarto, eles treinam para virar as figurinhas sozinhos. Assistem a vídeos para aprimorar as técnicas. Nos restaurantes, na falta de parceiro, tentam virar o sachê de ketchup. Andam com as mãos em concha e alguns já ganharam até mesmo calos. Se você convive com uma criança entre 8 e 10 anos no Rio de Janeiro, sabe do que se trata: a febre do bafo. A Copa do Mundo do Catar é passado, mas o que começou com uma vontade de completar o álbum virou uma “obsessão”, “vício” ou “mania”, como dizem os pais, sem saber o que fazer. Novas cartas aparecem, de Pokémon, do Brasileirão, campeonato europeu, não importa. O importante mesmo é ganhar no bafo. Foi assim com Rafael Soares Arantes, de 8 anos. Primeiro surgiu o interesse em completar o álbum, aí vieram as trocas e a tentativa de ganhar no “bafão”. Perdeu muitas figurinhas, foi passado para trás pelos mais velhos, foi treinando, vendo vídeos e aquilo foi crescendo em sua vida.
"Até que isso começou a atrapalhar, ele estava meio obcecado, levava figurinhas nas atividades extracurriculares e já teve períodos de só querer brincar com isso", conta a mãe. Alguns psicólogos alertam para a relação do vício com níveis de ansiedade e explicam quando o excesso do jogo pode ser considerado perigoso.
A psicóloga especializada em orientação parental Grace Falcão atende “clientinhos” assim, com as mãozinhas sempre em concha.
— Virou uma mania. As crianças têm a necessidade de pertencimento, então o que um faz, o outro faz. Mas é uma fase e vai acabar — avalia a especialista. — O lado positivo disso é que o bafo tira do computador, do celular, das telas, então interagem mais e aprendem a se autorregular.
Sinais de alerta
A psicopedagoga e neuropsicóloga Alessandra Bernardes Caturani Wajnsztein, coordenadora no Núcleo Especializado em Aprendizagem da Faculdade de Medicina do ABC, vê com mais preocupação essa febre do bafo, embora em São Paulo não seja observada com a mesma dimensão. Para ela, a brincadeira pode revelar, em alguns casos, quadros de ansiedade.
— A ansiedade está alarmante. Muitas crianças nem querem sair para atividades de lazer, porque querem ficar em casa jogando videogame. Quando saem, muitas vezes mostram uma sensação de vazio, tédio e pressa. Então podemos estar experimentando crianças que, quando usam o ketchup para bater bafo, não estão curtindo, não encontram prazer em situações sociais como antes. E no pós pandemia isso tudo piorou muito — avalia.
A ansiedade, diz ela, é a segunda queixa mais frequente na saúde mental das crianças, afetando até 5%. Só fica atrás do transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), com 6%.
Quando a criança desenvolve calos na mão de tanto jogar, a relação com a brincadeira mudou:
— Não é construtivo quando vem dor, deixa de ter uma funcionalidade de lazer. É disfuncional, porque a criança está ansiosa num almoço, numa espera, e faz até se machucar. Aquele movimento repetido pode ser usado para diminuir a ansiedade. A minha leitura é que quando eles saem de casa aumentam o padrão ansioso porque querem voltar, ficam inquietos. Precisamos trabalhar o prazer por outras coisas, como esporte, o lazer no sentido construtivo. Eles precisam novamente ver que tem um mundo lá fora que tem algo legal— diz Alessandra.
O neurologista da infância e da adolescência Rubens Wajnsztejn, diretor da Sociedade Brasileira de Neurologia Infantil, alerta para outro aspecto preocupante dessa geração: a competitividade.
— Tem um dado importante que existe hoje: há muita competitividade. Na verdade, o bafo mudou um pouco de contexto do que se usava lá atrás para hoje. Por exemplo, antes pensava na qualidade da figurinha, no álbum, hoje é questão de quantidade, “olha quanto eu ganhei”. É uma forma de ascensão sobre os outros. Está menos lúdico e mais competitivo — diz.
O neurologista explica que passou a existir na última Classificação Internacional de Doenças (CID 11) o transtorno “game disorder”, que vale para qualquer tipo de jogo. A Organização Mundial de Saúde passa a considerar o excesso de jogo quando a pessoa, adulto ou criança, deixa de fazer as atividades do dia a dia.
Assim, os pais devem avaliar se notam outros tipos de mudança de comportamento, como alteração de sono, apetite e irritabilidade. Esses são sinais de alerta. Se a criança bate bafo mas tem um comportamento normal em relação à socialização, família e outras atividades, especialmente atividade física e escolar, deve estar tudo equacionado.
Pais presentes
Os três especialistas concordam, porém, que cabe aos pais serem mais presentes e oferecerem alternativas de lazer para as crianças deixarem de lado essa pequena obsessão.
— Há falta de convivência, de interação social e as pessoas se acostumaram. Hoje elas sentam à mesa, não conversam, ficam assistindo vídeos no celular, respondendo mensagem, então a criança começa a ter outros vícios. Pensam: “vou bater bafo porque também não tenho outra coisa para fazer.” As famílias precisam ficar alertas — afirma Rubens Wajnsztejn.
A psicopedagoga reforça que não é no primeiro momento que a criança vai trocar o bafo (muito menos a tela) por outra atividade, mas é preciso insistir.
Bafo, celular, ou qualquer outro vício, ativa o sistema de recompensa do cérebro, dando uma sensação de que aquilo faz bem, trazendo satisfação imediata. Portanto, é preciso oferecer algo também bastante atrativo para conseguir ganhar a atenção.
— O lúdico é importante, mas estamos brincando menos com nossos pequenos e adolescentes. Também ficou confortável todo mundo estar no eletrônico, ou no bafo. Tem que substituir por outra coisa. É preciso mobilizar os pais e a sociedade nessa aproximação — diz Alessandra, que sugere levar nas saídas cadernos de desenho para desenhar, jogar e escrever, jogos como UNO ou Trunfo, que são fáceis de levar e possibilitam mais interação.
Para Grace Falcão, o melhor remédio contra a febre do bafo é a atenção e interação com os pais.
— É importante sugerir outras brincadeiras e limitar. Criança adora brincar com pai e mãe, mas não vejo pais jogando um jogo de tabuleiro, brincando olhando no olho. Quando há presença dos pais, eles trocam qualquer coisa por uma brincadeira com eles. É preciso oferecer tempo de qualidade — sugere.